domingo, 31 de maio de 2015

APENAS MAIS UM ENTRE BILHÕES

APENAS MAIS UM ENTRE BILHÕES

               É preciso usar a imaginação para compreender. Um garoto que descobria o mundo que o cercava com a mente limpa e o coração aberto. Desde cedo teve despertado seu amor pela leitura. Poderia ser o que quisesse na vida: médico, policial, um artista, quem sabe até mesmo um astronauta! Existiam milhões de escolhas diante daquele garoto. Pode-se dizer que ele era um com o universo. Entretanto, em um mundo riquíssimo de experiências, lhe foi apresentado um outro mundo: O mundo da religião. Quase sempre introduzido (ou seria implantado?) por aqueles que deveriam nos proteger.
               Em pouco tempo aquela realidade colorida e abarrotada de conhecimentos novos a adquirir deu espaço para uma realidade fantasiosa, em conflito com o mundo em volta. Nela existiam animais falantes, gigantes, genocídios sagrados, medo do invisível, expectativa de castigo, obediência cega, alienação sobre o conhecimento e separação dos infiéis. Há de se fazer um esforço tremendo para encaixar as demais experiências seculares que se seguiam dentro daquela caixinha de mentiras. Em nome da religião se abraça a intolerância, o preconceito, o machismo, a ignorância, a homofobia, a degradação da mulher, o medo e muitos outros fantasmas que rondam a humanidade desde seu início.
               Mas é um mundo de fantasia! Nele se espera um futuro sem dor em um reino com ruas de ouro. Acredita-se que a fidelidade terrena renderá muitos méritos no porvir. Aos campeões, tudo. E aos outros? Um tormento eterno, com direito as mais horripilantes torturas e o desprezo dos que estarão numa “boa”. E cá penso eu: Como pode uma religião criticar outra, se no final todas elas pregam a destruição de seus inimigos? Qual seria a diferença entre um cristão que morre queimado diante de um Estado Islâmico e um muçulmano que queimará para sempre no inferno? Uma religião apenas apressou o que a outra espera pacientemente. Se bem que o cristianismo já teve seus momentos de poder e inquisição. Porém tanto um quanto outro não dão a mínima para o que acontecerá aos seus infiéis. Em nome de suas religiões, o sofrimento do outro é anulado, inverte-se o sentido do amor. Ao entrar nesse mundo de fantasia, aquele garoto presenciou sua separação interna. Agora eram dois – o religioso e o natural.
               O garoto religioso cresceu enquanto o outro permanecia sentado em um canto escuro. Estudou Teologia, formou-se e ensinava sobre seu mundo de fantasia a outros. Sempre com aquele tom de verdade irrefutável e autoridade que vinham do alto. Mas como se esquecer do outro garoto? Sua chama interna pela verdade crescia a cada dia, tornando insuportável a convivência dentro de um mesmo corpo. Não havia harmonia entre a Ciência e a religião. Aquela disparidade envergonhava a um e alimentava o outro. Por mais que tentasse, não havia como entender o mundo real através das fábulas religiosas. Não dava mais para continuar naquele caminho. Ou assumia suas dúvidas e se comprometia a buscar respostas verdadeiras ou mergulharia profundo na fantasia e alienava-se de vez. Os dois garotos olhavam-se frente a frente, num encontro há muito aguardado.

               De forma bela, o religioso deu lugar ao natural. Agora tudo fazia sentido. A humanidade era uma só. Ficara fácil de interpretar o mundo. Mesmo imperfeita, a Ciência oferecia respostas muito mais honestas e verificáveis do que os livros sagrados. Já não havia dualidade dentro do garoto, pois o religioso desapareceu. Agora ele compreendia a História; Conseguia sentir-se igual com todos os demais seres vivos que compartilhavam essa geração com ele; Lutava contra seus preconceitos internos e vencia-os paulatinamente; Reconhecia a dignidade e os direitos da mulher, dos homossexuais, dos que pensavam diferente e de todos os povos e raças humanas; Buscou contribuir para o avanço da humanidade e lutava pela liberdade de todos. Voltou ao seu estado inicial, puro, com a curiosidade infantil, cheio de vontade de aprender. Voltou a ser ateu.

sábado, 28 de dezembro de 2013

CONTO #8 - Tolices Perdoáveis

Tolices perdoáveis

                Faz trinta minutos ou mais que nenhum tiro era ouvido nas ruas abaixo. Finalmente os calos e as bolhas podiam ser sentidos em meus pés enterrados naquele imundo coturno. Quem me contemplasse naquele cômodo destruído jamais saberia diferenciar-me dos entulhos que me cercavam. De uma forma não poética, até mesmo meu coração estava misturado àquele monte de lixo.
            As únicas companhias que me haviam restado eram meu fuzil, carinhosamente apelidado de Grete, e o terço que minha mãe me dera no dia em que me despedi. Após tanta atrocidade, não sabia se acreditava ou não em algum ser superior. Mas em minha Grete eu acreditava! Ela era minha garantia de vida. Conhecia aquela arma tão profundamente que não me dava ao luxo de desperdiçar nenhuma munição. Cada projétil tinha alvo certo. Um homem que jamais veria novamente sua família; ou um jovem que nunca mais beijaria sua namorada ou um filho que não mais tornaria aos braços de sua mãe. Ironicamente, eu mesmo esperava voltar para casa e saborear novamente aquele Sauerkraut com salsicha e batatas tão batido e irrelevante que minha mãe fazia com pressa para que meu pai não chegasse para o almoço sem que sua refeição estivesse pronta. Talvez eu não merecesse mais tal luxo.
            Em toda a minha vida eu jamais havia deixado minha pequena cidade de Freiburg. Orgulhosamente a cidade mais ensolarada de toda a Alemanha. Contudo, a devastação que se seguiu ao bombardeio arrancou de minha terra sua formosura. Muitos de meus amigos de infância morreram instantaneamente, sem chances de revidar. Nenhum deles era a favor da campanha militar do Führer. Sofríamos calados pelo medo de sermos punidos pela polícia. Imagine: um grupo de jovens que sonhavam crescer jogando futebol e torcendo para nosso time da cidade, sem pretensões de território, raça ou riquezas, apenas o esporte e a diversão. Tudo se evaporou em 27 de Novembro de 1944. Nunca mais veria meus amigos e irmãos novamente.
            Resolvi dar uma resposta agressiva ao ocorrido. Alistei-me no exército e vali-me de meus conhecimentos de caça que me foram ensinados por meu pai na floresta negra para mostrar que existiam homens bravos em Freiburg. Porém, nesta noite sangrenta de inverno, já não sei o que é certo ou errado. Matei tantos soldados inimigos que, ao invés de sentir orgulho, sinto-me culpado e envergonhado. Não sou a favor do Führer, nem de suas ideologias; apenas queria vingança. Entretanto, tornei-me mais monstruoso que os responsáveis pelo bombardeio de minha cidade. Meu nome em meu uniforme estava ensanguentado. Por alguns segundos tentei me lembrar do dono daquele nome. Certamente eu não era mais o mesmo homem que o recebera ao nascer. Rodrigo era uma sombra de uma vida passada, marcada pela tragédia, incompleta e que não condescenderia com aquele atirador cruel que estava deitado ali, aguardando a hora de matar mais pessoas.
            Cuidadosamente, levanto-me para conferir o movimento das ruas. O meu corpo dolorido – instrumento de guerra – mal obedecia meus comandos. Com muita dificuldade averiguei que todos os meus companheiros de batalhão estavam mortos. A rua estava saturada de soldados franceses. Nada deteria a ocupação francesa agora. Em um futuro incerto, qual seria a melhor escolha a tomar? Render-me e voltar como um derrotado preso ou empreender um último ataque? Com minha destreza, certamente poderia matar mais uns três ou quatro inimigos antes do fim. Mas nenhuma morte havia aliviado a dor da perda de meus amigos de infância. Nem mesmo eu me reconhecia naquele uniforme nazista. Quem sou eu, afinal? No que eu havia me tornado? Abraço minha querida Grete e a recarrego lentamente.
            Haveria perdão para meus pecados nesse novo mundo que me aguardava? Minha inocência dissipara-se definitivamente. Jamais tornaria a ser o mesmo jovem sorridente que cantava nos bares, abraçava os companheiros após as partidas de futebol ou divertia-se com a irmã mais nova de poucos anos. Aquele jovem que varria a casa; cumprimentava todos os vizinhos e trazia calor ao coração de sua mãe havia morrido no meu primeiro tiro certeiro na guerra. Junto com meu inimigo, minha alma morrera. Daquele momento até agora apenas um fantasma existia; cumprindo ordens e abatendo vidas como se fossem animais da floresta negra. Não sentia mais nada. Não estava mais vivo. Era como uma peça de quebra-cabeça perdida em um canto, fora da caixa, não pertencendo a mais nada.
            A guerra não trazia recompensa alguma. Nenhuma compensação pela dor, nem sentimentos de altivez ou orgulho. Era pura estupidez mascarada em glorioso dever para com a pátria. Aprendi que a vida humana é sagrada e que melhor seria ter partido com meus amigos para o outro mundo do que fazer parte daquele teatro de horrores. Porém, era tarde demais para consertar qualquer coisa. Uma atitude me era requisitada pelo meu coração. Decidi fazer o que era melhor.
            Deixei aquela construção com meu fuzil empunhado e gritei alto, atirando para o céu:
            - Ich tot bin mit meinen Freunden!
            O que se seguiu foram diversos tiros. Não sei quantos me acertaram, pois eu já não sentia dor alguma. Minha última recordação foi da luz do poste que cintilava, igual o sol que nos aquecia nas tardes de jogo, antecedendo as graciosas risadas e sonhos que tornavam minha vida significativa. Encontrei na morte a compensação da injustiça sofrida e tombei com o sorriso que há muito havia esquecido em minhas memórias. De tudo que realizei na guerra, essa foi a minha única tolice perdoável.


quarta-feira, 30 de outubro de 2013

CONTO #7 - Encontro Festivo

Encontro festivo

Aquele era um dia especial para Amaro. Após três semanas de intenso trabalho, retornaria para casa e para sua família. Estava tão ansioso para rever seus familiares que mal se continha em sua mesa de escritório. Como prometera para sua esposa, conseguiu cumprir integralmente o acordo que fizera com a empresa e dedicou grande parte de suas férias a colocar as documentações em dia. Após as 18 horas, seria um homem livre novamente.
Comentava, extasiado, com seus colegas o encontro festivo que teria com sua família na área da piscina do condomínio. Aquela tinha sido uma conquista hercúlea em sua vida. Poupara durante anos para dar entrada no luxuoso apartamento no qual planejara dedicar o resto de sua existência ao lado de todos que amava. Seriam inúmeros churrascos, festas, brincadeiras e cantarias. Era o lugar perfeito para realizar sonhos. Já podia imaginar o quanto deveria estar decorado para recepcioná-lo à noite. Contava os segundos, roendo a alma.
Independente do que fazia, pausava seus afazeres ao olhar o retrato de sua família que decorava a mesa entupida de papelada. Eram ao todo cinco no retrato: Amaro, sua esposa Moema e seus três filhos: Layla, Felipe e Lukas. Este último com apenas três anos de idade e muito amor pelo pai. Alegrava-se sobremaneira ao vê-lo chegar do serviço e logo pulava em seu colo, buscando seu carinho. Da mesma forma, todos os outros filhos o amavam, bem como sua esposa. Não seria possível voltar para casa sem comprar presentes para todos. Decidido, organizou sua mesa e, às 18 horas em ponto, partiu para o shopping à procura dos mimos ideais.
Para sua esposa Moema comprou uma lindíssima joia – e, diga-se de passagem, caríssima – que ornaria sua beleza tal qual uma das antigas rainhas da História. Para os filhos mais velhos foi fácil de escolher; aparelhos eletrônicos de última geração. Eles adoravam tecnologia e certamente louvariam a sábia escolha do pai. Difícil foi encontrar o presente perfeito para o pequeno Lukas. Após exaustivamente circular pelas melhores lojas de brinquedo, achou um item que lhe saltou aos olhos: um delicado ursinho de pelúcia. Sabia que seu filho mais novo se agradava com pelúcias, mas relutou em comprar-lhe mais uma. Enfim, era o que lhe agradava então não se deveria mexer em time que está a vencer.
Por último, passou em uma papelaria e comprou belíssimos cartões de presente e os preencheu com muito sentimento. Mesmo não sendo tão bom com as palavras, Amaro esforçou-se para fazer seu melhor. Satisfeito, levou os pacotes para seu carro e partiu para casa. Ouvindo uma seleção de músicas marcantes que gravara com seus filhos para viajar, rumou imaginando que grandiosa festa o aguardava na piscina. Abraçaria a todos e esqueceria as lutas desse mundo.
Acionou o portão eletrônico e estacionou em sua vaga na garagem. Queria muito ir direto para a festa, mas decidira subir ao seu apartamento para arrumar-se melhor. Assobiando sua canção favorita no elevador, chegou até seu andar: o décimo terceiro. Seu coração disparou quando encaixou a chave na fechadura e rodou. Abriu a porta e encontrou o apartamento da forma como deixou. Estava tudo silencioso. Correu até o banheiro repetindo para si mesmo:
- Rápido, Amaro. Eles te esperam na piscina!
Despiu-se e tomou seu banho celeremente. Secou-se, escolheu sua melhor roupa e perfumou-se. Ajeitou seu cabelo e, decidido, disse novamente para si mesmo diante do espelho:
- Chegou a hora! Vamos para a festa!
Amaro passou pela sala, que apesar de sua impressão deturpada, continuava em estado caótico. Tocou os presentes que deixou no sofá, o único móvel que permanecia intacto. Caminhou até a sacada de seu apartamento e subiu no parapeito e retirou um pedaço dobrado de jornal que guardava há muitos dias. Nele era possível ler a seguinte manchete:

Mulher e filhos morrem em horrível acidente na Marginal.


Beijando o jornal, olha para baixo e vê a piscina do condomínio. Abre seus braços e vai sorrindo ao encontro de sua família que, excitadíssima, aguardava a chegada de Amaro. E a festa aconteceu na mente daquele homem.

terça-feira, 1 de outubro de 2013

CONTO #6 - Fábula Moderna

FÁBULA MODERNA

      O Lobo-guará, o presto mensageiro da floresta, estava agitado naquele dia. Durante a reunião semanal dos animais do cerrado ele mal podia aguardar para dar seu parecer diante de seus amigos.
      Majestosa, a Onça pintada – governante daquelas bandas – saudou a todos e declarou aberta a reunião de condomínio.
      - Meus caros habitantes da mata! Quais são os assuntos dessa belíssima semana?
      Pela ordem, primeiro apresentou-se o Tamanduá-bandeira, hilário como sempre. Contou as fofocas de toda a parte. Fez corar o Macaco-prego e o Veado-mateiro, sugerindo algo estranho entre eles...
      - Em nosso reino, todos são livres para fazerem o que quiserem; desde que respeitem os limites do próximo. Somos animais racionais ou o quê?
      Diante da sabedoria da Onça todos se calaram e concordaram com a liberdade dos animais caluniados. Todos eles eram compreensíveis e humildes para mudarem seus pontos de vista de acordo com os fatos e reflexões novas que surgiam. Mesmo porque a verdade é multifacetada e complexa demais para ser tão intransigente.
      O próximo animal a falar foi a senhora Capivara. Como de costume, distribuiu muitos quitutes deliciosos, feitos a pouco com todo carinho. Ela exigia que o Pato-mergulhão fizesse menos barulho na hora do descanso de seus filhotes. Pedindo mil desculpas, envergonhado, o Pato prometeu jamais cometer o mesmo erro:
      - Quáááaálquer coisa é só me avisar, senhora Capivara. Não vou causar mais incômodo.
      Tratar com seres tão educados é outra história, não é? Os animais reclamavam e prontamente eram atendidos e tudo ficava bem novamente no Cerrado. Até que a vez do Lobo-guará chegou.
      - Excelentíssima dona Onça, temos um problema urgente!
      Todos os animais ficaram atônitos diante do alerta. Preocupada, a regente lhe perguntou:
      - Diga-me, meu caro lobo, o que aconteceu?
      - São os humanos novamente, vossa majestade. Desta vez estão querendo cortar nossas melhores árvores ao norte apenas para construírem algo que não sei bem o que seria!
      Imponente, a Onça-pintada convocou seus servos mais confiáveis para tentar impedir aquela ação irracional.
      - Designarei o Quati, o Porco-espinho e o Falcão-de-peito-vermelho para a missão. Que ninguém se machuque, nem mesmo nossos agressores. Usem minha sabedoria para determos essa destruição!
      Após ouvirem o plano cuidadosamente, o grupo se despediu dos demais, decididos a salvarem as preciosas árvores. A jovem Anta chorava, mesmo sem motivo, pela partida dos amigos. Imaginava o pior, contudo era apoiada pelo seu amigo Paca e pela vizinha Queixada.
      Em poucas horas, os amigos avistaram o enorme trator que estava estacionado diante da mata intocada. Engoliram seco pela monstruosidade daquela máquina. Jamais haviam visto algo parecido! Era maior que qualquer outro animal e tão duro quanto as pedras do rio. Mais que depressa executaram o plano da Onça e tomaram seus postos. Assim que o humano aproximou-se da gigantesca máquina, o gavião – astuto por natureza – roubou-lhe a chave de ignição das mãos em um voo rasante de impressionar qualquer um. Confuso, o homem xingava o pássaro com os punhos cerrados e os dentes rangendo. O Quati, que estava no teto do trator, jogou-se na careca do homem que, assustado, perdeu o equilíbrio e sentou-se em cima do Porco espinho.
      Dando um imenso urro, o homem fugiu daquele local aterrorizado pela ação dos animais. Enquanto corria, retirava os espinhos que ficaram grudados em suas nádegas. Vitoriosos, os animais retornaram e contaram aos outros o sucesso de sua missão.
      Ah! Como fizeram festa naquele dia! O perigo estava distante de sua casa. Foram muitos dias sem o fantasma da humanidade rondando sua paz, pois a sábia Onça garantiu a felicidade daqueles dias.
      Mas, como em qualquer fábula moderna, em pouco tempo muitos tratores invadiram a mata e devastaram tudo para a construção de uma usina hidrelétrica. O território foi todo inundado e os animais morreram.


Moral da história: Nem mesmo a sabedoria da natureza ou a bondade da terra são suficientes para deter a ganância desvairada da maldade humana.

sábado, 21 de setembro de 2013

CONTO #5 - Crescer e Involuir

Crescer e involuir

Olá, meu querido diário! Sinto que essa talvez seja a última vez que escrevo meus sentimentos a você. Foram tantos anos de desabafo, de alívio, de consolo! Sem você não sei o que eu seria. Para poder raciocinar melhor, tentarei resumir nessas próximas linhas minha angústia desde o princípio:
Tudo começou quando eu era apenas uma criança. Me sentia livre para imaginar, para brincar, para pensar e para sonhar com meu futuro. Entretanto, alguma coisa estava errada. Suspeitava que algo estivesse errado com meu corpo, mas tinha medo de compartilhar com meus pais o que sentia. Meus dedos teimavam em desobedecer-me, como se estivessem ganhando vida própria. Sentia-os duros, enferrujados. Com muita luta prestavam-se a responder meus comandos. Guardei isso por muitos anos – e aprendi a fingir por causa disso – até que não achei outra solução senão me abrir com os adultos.
O mais estranho foi o diagnóstico que recebi. Eu tinha longos parafusos no lugar dos ossos dos dedos! E meus pais se alegraram com isso! Diziam-me que estava tudo bem e que já era tempo daquilo acontecer. Como assim estava tudo bem? Não eram eles que sentiam as dores do metal a enrijecer e dilacerar a carne em volta todas as vezes que precisava usar meus dedos. Passei a achar que eles haviam enlouquecido; porém celebravam o momento com largos sorrisos.
A cada ano os sintomas pioravam. Logo minhas mãos e meus braços estavam comprometidos. Pelos exames eu conseguia ver as ligas metálicas substituindo os ossos, tal qual um câncer cibernético. Eu queria meu corpo de volta! Brincar já era um fardo e minhas dores me impediam de sonhar. Imagine, meu querido diário, como minha adolescência foi complicada.
Diante de minhas reclamações, minha mãe apenas dizia que tudo ficaria bem e que estava intercedendo por mim perante o deus de sua religião. Não estava tudo bem! Eu queria entender o que era estar tudo bem! Sempre fui questionadora e curiosa. Li muitos livros e desenvolvi um senso crítico precoce. Isso incomodava meus pais, mas jamais os impediu de continuar a me catequizar. Mesmo que minhas capacidades mentais me levassem a criticar tudo à minha volta, ainda sentia muito amor pela minha família. Eu não conseguia entender como meus pais podiam acreditar nas fantasias religiosas que tentavam empurrar pela minha garganta abaixo. Evitei entrar em discussões após perceber o quanto elas os abatiam. Obedecia suas ordens como uma boa filha. Entretanto, o pior estava apenas por vir.
Minhas pernas ficaram geladas. Ao toque de meus punhos ouvia-se o som do metal que revestia meus membros por completo estalando. Durante esse tempo, desenvolvi o hábito de assistir aos jornais com meu pai e, enquanto contemplava sua total apatia diante das notícias, meu coração se indignava. Como podia nosso país aceitar tamanha corrupção? Por que o povo não fazia nada?  O roubo, a pilantragem, o desrespeito às leis, o sarcasmo dos poderosos e a injustiça eram como um tapa na minha cara e pareciam não produzir nenhum efeito em meu pai. Ele apenas dizia, vez ou outra:
- Eita, Brasil! – e dava aquele sorrisinho de canto de boca.
Será que estou louca, querido diário? Minha doença me domina lentamente enquanto sinto que minha consciência se afoga em um lamaçal de hipocrisia. Quem dera eu tivesse forças para lutar. Tudo era muito bonito nas canções, na literatura, na arte. Porém, na vida real, todos pareciam conformados, obedientes. Minha juventude remanescente impedia que meus órgãos fossem transformados, tal qual o resto de meu corpo. O mais incrível é que tudo parecia igual em minha imagem refletida no espelho. Era a mesma Adélia de sempre por fora, mesmo que robotizada por dentro.
Nas últimas semanas, tive o desprazer de visualizar meus novos exames. Rins, estômago, pulmão, coração e tudo mais estavam diferentes. Eram máquinas intrincadas, sofisticadas, alterando minhas emoções. Eu, que preferia subir em árvores e me deliciar com frutas fresquinhas, agora me empanturrava de fast food. Eram refrigerantes, doces, aparelhos de celular novinhos, tablets, roupas chiques, joias; Passei a buscar todas essas efemeridades com uma sede incontrolável. Inconformada com a falta de recursos de meus pais, eu apelava para bicos eventuais a fim de saciar minha fome de consumo. Não sinto mais emoções como antigamente, apenas as batidas eletrônicas deste novo coração. Minha personalidade se perde na banda larga desse sinal wi-fi da realidade à minha volta. Pelo andamento da carruagem, sinto que morrerei em breve.
Não consigo mais refletir. Não tenho mais simpatia pelos oprimidos. Por mais que eu tente, minhas críticas acabam por concordar com a maioria. Estou com medo... estou desaparecendo... diário... por favor, não me abandone!...
Eu... Err... tbakxhjbcahi...
...
Error – 404
...
Consciência não encontrada.
...
Instalando novo software.
...
Instalação concluída com sucesso!
...

Olá, querido diário! Sou eu, Adélia (que nome horroroso!). Graças a Deus está tudo bem! Logo mais vou ao culto com meus pais. Desisti de fazer faculdade, pois não nasci para estudar. Estou super feliz! Vivo em um país maravilhoso e tenho tudo que quero. Se não tenho, vou atrás, custe o que custar! Afinal, tenho meu pai para comprar o que quero – ou algum namoradinho para pagar a conta. Adoro você, diário, e vou me despedir agora porque estou eufórica e tenho muito que fazer. No horário do jornal nos vemos de novo, pois não suporto aquela baboseira. Prefiro minhas séries e meus ídolos! Kisses, bye bye! :)

sexta-feira, 9 de agosto de 2013

CONTO #4 - Não é mais uma história de vampiros e lobisomens

NÃO É MAIS UMA HISTÓRIA DE VAMPIROS E LOBISOMENS

A convenção milenar aconteceu à meia noite; pois esse é o melhor horário para vampiros e lobisomens.  Não era uma festa ou algo o tipo. Era uma tentativa de conciliação. Imagine só: Vampiros e lobisomens estavam prestes a assinar um acordo lendário que traria a paz eterna a todos os seus membros de uma vez por todas! Apesar de esses encontros serem realizados a cada mil anos, as lembranças do último – e, diga-se de passagem, mal sucedido - ainda permaneciam vivas nas mentes de muitos ali.
Acreditem; o lugar escolhido para a convenção era o Rio de Janeiro! O Brasil estava com tudo mesmo! A terra da Copa e das Olimpíadas agora receberia o alto escalão da Transilvânia. Porém, era tudo muito secreto. Nem mesmo as autoridades brasileiras sabiam do evento. Mesmo assim, tudo era cheio de pompa. Até o Cristo Redentor fazia parte da paisagem!
Mas vamos ao que interessa; a reunião estava esplêndida. Todos os lobisomens vieram desta vez. Dizem as más línguas (dos vampiros) que até banho e tosa eles fizeram. O mais antigo, Licaão, estava sentado ao lado do ilustre conde Drácula. Nem presas tinha mais. Estava decrépito, contudo olhava com saliência para a enfermeira particular do conde. Queria uivar diante daquele traseiro, mas nem forças para isso tinha mais.
Emburrado mesmo estava Lestat de Lioncourt. Repetia para si mesmo: “Eu quero interferir nas coisas, fazer as coisas acontecerem!”, mas pouco havia o que fazer ali. Foi consolado pelo horroroso Nosferatu. Que cara feio era aquele!
Na ala dos licantropos era possível ver lobos para todos os gostos: Versipélios, Volkodlákes, Werewolves, Dracopyres, Óborotens, Hamtammres, Loup-garous, Arbac-apuhques, Lobisomens brasileiros e até mesmo aquele novinho que ficara famoso no cinema. Já na ala dos vampiros, existiam sanguessugas de todas as partes do mundo, sempre bem tratados por nosso anfitrião Bento carneiro. Apenas aquele casal famosinho – isso mesmo, aquele que brilhava como purpurina – quis assistir a tudo de um camarote VIP. Era uma cena deveras pitoresca de se ver.
Após o show da cantora Natasha, que estava acompanhada de seu marido Angel, um stand-up de Astromar Junqueira fez a todos darem boas gargalhadas. Tudo estava pronto para a assinatura do tratado de paz que seria celebrado com as assinaturas de dois representantes legítimos dos clãs. Um lobo muito distinto de nome Lawrence Talbot representaria os licantropos. Para assinar em nome dos vampiros ergueu-se um pacato médico chamado Carlisle. O silêncio era geral.
Segurando a pena (claro, deve-se ter classe nessas horas), o jovem lobisomem pensou por alguns segundos. Aquele ato mudaria a história para sempre. Era muita responsabilidade para um único lobo. Olhava nos olhos de seu porvir aliado e refletia. Tudo acabaria ali! Não mais guerras, ou lutas, ou discussões – seria um eterno mar de rosas.
“Nem ao menos um motivo para esganar um dentuço desses” – considerava Talbot. Era o início de uma era em que lobisomens e vampiros andariam de mãos dadas, cantarolando e atirando flores para o céu. Tudo bem melodramático. Quase uma afronta.
Após muito refletir, um leve sorriso foi esboçado no rosto de Talbot. Imediatamente traduzido e concordado por Carlisle. Em uma breve troca de olhares, ambos sabiam que uma existência sem a adrenalina da inimizade os condenaria a um paraíso forçado. Num ato de total desrespeito – graças aos deuses da noite -  o jovem lobisomem rasgou o acordo.

A plateia suspirou, atônita. Diante do gesto de confirmação de Carlisle, ambos deram um ultimo sorriso. O que se seguiu foi uma luta daquelas, digna de cinema! Mais uma vez o acordo havia ido por água abaixo e, para alegria de lobisomens e vampiros (e nossa, eu diria), o conflito continuaria. E viva a ficção!

quarta-feira, 7 de agosto de 2013

CONTO #3 - A Breve Vida de Stela

A BREVE VIDA DE STELA

         Quando tento me lembrar do nascimento de Stela, não consigo achar nenhuma evidência de sobrenaturalidade. Apenas tragédia. Mas afinal, nascer não é um milagre? Foi em uma noite tenebrosa, varrida por uma tempestade, que ela nasceu. Não eram apenas os céus que se turbavam. Ali naquele pequeno hospital de interior estava uma família sem nenhum recurso. Nenhuma esperança de criar mais uma filha. Os pais dividiam-se entre a alegria de vislumbrar aqueles lindos olhinhos escuros e a angústia de retornar para a casinha de taipa e constatar que a comida acabou.
            Entendo a reação deles. Eu, que havia terminado meus estudos há pouco tempo e estava vivendo o sonho do primeiro emprego como enfermeira, jamais negaria cuidar daquela pequena princesa. Era considerada por minhas amigas como uma verdadeira “manteiga”. Com a face banhada em lágrimas, a pobre mãe fez a proposta:
            - Minha filha... Cuide de minha filha! Não posso dar a ela um futuro. Por caridade, fique com ela. Ajude-me...
            Casos assim acontecem com certa frequência. Mas nunca havia sido tão perto de mim, tão pessoal. Confesso que fiquei encantada pelos olhos de Stela, que naquele momento nem nome tinha. Foi tudo muito rápido. Em questão de horas estava eu, chorando, no pátio do hospital, responsável por uma vida tão frágil. Mesmo naquela situação de desespero, dei-lhe o nome de Stela.
            - Seus olhinhos são reluzentes! É o único brilho desta noite triste. Tal qual uma linda estrela. Minha pequenina estrela.
            Nunca mais encontrei aquela família. Despediram-se sem olhar para trás, vagando pelas ruas úmidas da cidade. Nem calçados aquela mãe tinha. Fiz questão de lhe dar os meus; bem como todo o dinheiro que tinha na bolsa. Éramos eu, Stela, a cidade e uma vida pela frente. Pensando bem, éramos apenas eu e Stela.
            Aquela garotinha me concedia certo contentamento que em nenhum outro lugar encontrava. Vivi meus dias a me dedicar a ela. Participei de cada fase de seu crescimento e esqueci até mesmo de mim mesma. O mais intrigante era a personalidade de Stela. Sempre muito madura para sua idade. Sempre introspectiva, observadora, incomodada. Seus comentários se tornavam cada vez mais profundos e acertados sobre tudo que observava. Não foram poucas vezes que ouvi de amigos que se tratava de uma “garota muito inteligente; oxalá superdotada”.
            E era exatamente o que me foi constatado pelos exames médicos e psicológicos. Alguma coisa deveria estar errada. De tão altos, os resultados dos testes chegavam a ser absurdos. Nada que eu já não sabia. Era minha adorável princesa, independente de qualquer resultado científico.
            Porém, o que mais me desconcertava era a forma como Stela lia a vida. Isso mesmo! Ela lia tudo a sua volta. Dizia-me: “Mamãe, posso ler tudo o que está a minha volta!”. Tal habilidade lhe trazia muita tristeza. Era como se o mundo estivesse disponível em um código compreensível para ela e oculto para nós. Cresceu quieta, meditativa, sempre triste. Deus sabe o quanto tentei animá-la! Em muitas ocasiões recebia a mesma resposta:
            - Como poderia ficar feliz com tanto caos e tristeza a minha volta?
            Consequentemente, ela não aguentou viver por muito tempo. Portanto, como tributo ao dom que recebi de poder participar de sua breve passagem por aqui, tentarei contar as principais impressões que ela teve durante suas caminhadas incertas. Pelo menos aquelas das quais me recordo melhor. Acredito que minha pequena princesa era de outro lugar. Era uma verdadeira estrela que desceu aos meus braços naquela noite cinzenta.
            Em uma manhã de sol, caminhávamos para o parque. Stela olhou para cima e disse:
            - Mamãe, a fragilidade da vida nesse planeta é absurda! Chega a ser pavoroso como a humanidade chegou até aqui. Somos pedacinhos perdidos de matéria espalhada e ainda nos orgulhamos de alguma superioridade. Se cada um soubesse o quanto custou para o universo se desenvolver da forma como está, teríamos outra forma de civilização. Ninguém trataria o outro com desprezo pelas suas escolhas pessoais, mesmo que fossem ideológicas, religiosas, comportamentais ou de qualquer outro tipo. Tudo o que vejo são pessoas lutando umas com as outras por motivos banais. Precisamos olhar mais para o universo.
            Ao passar pelas construções de nossa cidade, Stela comentava:
            - Quanta opulência! Que necessidade cega de se destacar. A senhora consegue entender o quanto as pessoas tentam se sentir superiores às outras? Tudo isso para poder garantir sua reprodução. Pessoas trabalham, se exercitam, ganham dinheiro, adquirem coisas, cuidam da aparência, ganham cargos, status, estudam, se esforçam... E por fim, tudo isso é para procriar com melhores chances de sobrevivência. A humanidade é um grande rebanho de animais lutando dia e noite pela continuação de sua espécie, sem nenhum tipo de consideração pelo mais fraco. Tudo gira em torno disso: a economia, a religião, o proselitismo, o patriotismo, o direito, a política, e qualquer ação humana.
            Confesso que a maioria de seus comentários me era incompreensível. Talvez aqueles que lerem o que escrevo entenderão melhor. Gostaria de dizer que amava muito minha filha. Tenho certeza que hoje ela está lá em cima, de onde veio, brilhando no espaço. Nas noites em que me sinto mais solitária, é para lá que olho, na esperança de vê-la novamente. Sempre me lembrando de suas últimas palavras:
            - A vida é um pequeno milagre, mamãe. Não perca tempo com fantasias criadas pelo medo. Viva sua vida plenamente. Não permita que outros te dominem com suas linguagens abusivas. Cada um é único nesse planeta. Cheguei à conclusão de que não existe nada além do talento humano nessa vida. Se for para somar esforços conjuntos pela evolução da humanidade, que isso seja feito sem mesquinharia nem dominação. Mesmo que eu não consiga ver algum futuro para nossa civilização, sei que qualquer esperança repousa sobre a tolerância e o conhecimento. Eu te amo, minha mamãe. Obrigada por ser a minha estrela também!

            E Stela fechou seus olhos depois de ter aberto os meus.